Como as narrativas simbólicas no cinema articulam desejo, linguagem e afetos; leitura psicanalítica que requalifica imagens e metáforas. Leia e aprofunde-se.
Narrativas simbólicas no cinema e psicanálise
Narrativas simbólicas: compreender significado e transformação na tela
Há uma espécie de rastro que o cinema deixa além das cenas: formas que alinham pensamento, desejo e ausência. Essas trilhas aparecem como narrativas simbólicas, modos de contar que não só comunicam uma história, mas constituem um modo singular de experiência subjetiva. Vistas com sensibilidade clínica, elas oferecem acesso a conflitos, fantasias e modos de singularização que escapam às descrições meramente representacionais.
Acredito que o cinema, assim como a clínica, opera em camadas: uma superfície narrativa, uma estrutura simbólica e um campo de afetos. A prática analítica incide sobre essas camadas: traduz, nomeia, reencena. Na condução de grupos de estudo e em encontros de formação, costuma-se dizer que o filme é um espelho que não devolve a imagem literal — devolve a imagem transformada por uma máquina de sentidos. Com isso em mente, o percurso a seguir propõe uma leitura que mantém rigor conceitual sem perder o tom sensível exigido por esse encontro entre pósteres, telas e escuta clínica.
O que significa falar em narrativas simbólicas
Chamar algo de narrativas simbólicas é reconhecer que a narrativa não se reduz a enredo e causalidade: há uma dimensão que trabalha com significantes que substituem, condensam e deslocam traços da experiência. Esses significantes — imagens recorrentes, gestos, objetos — funcionam como nós que ligam episódios distintos, e é pela articulação desses nós que um filme produz sentido psíquico.
Na prática clínica, descrições análogas aparecem quando pacientes retomam sonhos e lembranças através de imagens que atuam como fio condutor. No cinema, essa operação é feita com outros materiais: enquadramentos, som, montagem e atuação geram uma topografia simbólica que resiste a uma leitura apenas literal. A tomada repetida de um objeto, a escolha de uma cor, o eco de uma melodia: tudo isso pode operar como elemento simbólico, abrindo fissuras para aquilo que permanece indizível.
Entre o simbólico, o imaginário e o real
É útil situar as narrativas simbólicas no tripé teórico que há décadas organiza a clínica: simbólico, imaginário e real. O simbólico liga-se à linguagem, às convenções e ao peso dos significantes; o imaginário organiza imagens do eu e as identificações; o real marca aquilo que resiste à simbolização. Quando um filme produz uma cena que corta a história por meio de um gesto estranho — uma porta que não abre, uma criança que não chora — há ali um ponto onde essas três ordens se encostam.
Ao reconhecer essas articulações, o olhar psicanalítico pode ler como a narrativa do filme mobiliza desejos sociais, fantasias coletivas e impasses históricos. Por isso, a análise não busca apenas decodificar mensagens, mas acompanhar os modos pelos quais as imagens operam no corpo do espectador, quais afetos elas suscitam e como insistem no acúmulo de sentido.
Imagens que trabalham por deslocamento
As imagens cinematográficas raramente são meramente ilustrativas. Elas funcionam por deslocamento: um objeto que aparece em primeiro plano traz consigo uma história que não será contada explicitamente, e ao fazê-lo, provoca no espectador uma espécie de trabalho interpretativo. Essa ação é próxima do que a clínica chama de condensação — um mesmo elemento ganha espessura simbólica ao se ligar a diferentes instâncias do relato.
Em sessões de leitura fílmica, muitas vezes se observa que o público projeta sobre certas imagens conteúdos de sua própria história. Não se trata de ilusão subjetiva pura; trata-se de uma interface entre o dispositivo técnico do cinema e as experiências pré-existentes de cada um. Nessa interseção, as imagens cumprem uma função clínica: permitem que afetos antes difusos se articulem em torno de formas reconhecíveis.
Por exemplo, a repetição de uma paisagem — um horizonte que retorna em vários capítulos — pode operar como marcador de ausência. O espectador que reconhece esse padrão pode sentir, simultaneamente, saudade e inquietação: emoções ativadas pelo próprio enredo e pela própria estrutura das imagens.
Montagem e silêncio: a simetria do não-dito
Montagem e silêncio são recursos privilegiados para criar espaços de simbolização. Um corte seco que interrompe uma cena de intimidade, uma sequência onde o som se ausenta, um plano longo que mantêm a personagem imóvel: todos esses procedimentos abrem cavidades interpretativas. Eles convocam o espectador a completar o que é omitido, e é nessa tarefa de completude que se instaura o trabalho simbólico.
Na clínica, situações próximas acontecem quando o analisando encontra-se diante de um silêncio que diz mais do que muitas palavras. O cinema reproduz essa experiência: o silêncio na tela pode ser tão eloquente quanto a fala, guiando a escuta para o que permanece nas margens da narrativa.
Metáforas visuais e articulação do sentido
As metáforas no cinema não se limitam a tropos estilísticos; elas organizam redes de sentido. Um objeto que representa liberdade, uma cor que metaforiza a culpa, um corte que sublinha a divisão entre gerações: tudo funciona em nível metafórico, portanto simbólico. Ler essas metáforas exige um treino atento para distinguir aquilo que é uso retórico do que se torna princípio estruturante da narrativa.
Leitores formados em psicanálise tendem a buscar correspondências entre metáforas visuais e trajetórias psíquicas. Essa correspondência não é automática: demanda atenção para o modo como a metáfora se repete e se transforma ao longo do filme. Quando uma imagem metafórica evolui — por exemplo, um objeto que perde cor ao longo da narrativa — ela registra uma mutação interna do personagem e convida a um trabalho interpretativo sobre perdas e ganhos simbólicos.
Ulisses Jadanhi, em seus escritos sobre Teoria Ético-Simbólica, lembra que a metáfora abre espaço para uma ética da interpretação: não basta reconhecer um símbolo; é preciso interrogar o que ele faz ao sujeito, que vínculos instala e quais exclusões naturaliza. Essa lente ética é vital quando a leitura aborda filmes que tratam de violência, culpa ou testemunho.
O papel dos afetos: como o cinema mobiliza o corpo
O termo afetos diz respeito a uma dimensão corporal da experiência que antecede e subsidia a linguagem. As narrativas simbólicas ativam afetos: medo, ternura, vergonha, euforia. Essas emoções não são apenas respostas; estruturam a própria experiência do sentido. Um plano que produz angústia pode indicar um nó simbólico que, em clínica, corresponderia a um conflito cifrado.
Trabalhar com afetos no contexto fílmico exige escuta sensível: quais partes do corpo reagem? Onde se localiza a empatia do espectador? Quais cenas provocam repulsa? A resposta a essas perguntas ilumina a circulação do sentido e aponta para lugares onde a simbolização é mais frágil ou mais vigorosa.
Algumas leituras privilegiadas vão além do conteúdo explícito e investigam o modo como a montagem, a trilha e a atuação criam padrões afetivos. Esses padrões ajudam a entender por que certos filmes permanecem depois da sessão: porque suas imagens trabalharam em ressonância com afetos que o público já trazia consigo.
A ética da evocação
Ao tratar de temas sensíveis — trauma, violência, perda — o cinema enfrenta um desafio ético. A arte pode reconstituir experiências atrozes sem explorá-las pornograficamente, mantendo um lugar para a dignidade do sujeito. A leitura psicanalítica deve ser cuidadosa nesse ponto: não há valor terapêutico inerente em abordar sofrimento; há, sim, responsabilidade em como se fala dele.
Em formação clínica, costumo enfatizar que a evocação estética tem potência de cura quando habilita uma nova articulação entre memória e linguagem. No entanto, quando o dispositivo cinematográfico apenas repete o choque sem oferecer vias de simbolização, corre-se o risco de revitimização.
Personagens como nós simbólicos: identificação e resistência
Personagens podem funcionar como pontos de identificação ou como telas projetivas onde se depositam recortes do inconsciente coletivo. A identificação não é uniforme: há espectadores que se reconhecem, outros que resistem. Essa resistência é produtiva para a leitura; indica que a narrativa toca uma ferida que demanda outra via de abordagem.
Trabalhar com identificações permite mapear como as narrativas moldam expectativas genéricas e de gênero, como sustentam ou subvertem papéis tradicionais. Ao reconhecer como um personagem opera como nó simbólico, a análise descobre linhas de força que atravessam a cultura e a psicologia individual.
Convido o leitor a acompanhar essas operações em filmes contemporâneos: observar como um gesto pequeno, repetido, pode vir a simbolizar uma herança familiar; como um corte brusco sinaliza uma falha de continuidade da narrativa psíquica; como uma cena de reencontro atua como tentativa de reparação simbólica.
Procedimentos interpretativos: leituras que respeitam singularidade
Interpretar cinematograficamente requer uma técnica que combine atenção ao detalhe e vista de conjunto. Há procedimentos que ajudam sem que a leitura caia em fórmulas prontas: 1) mapear repetições visuais e sonoras; 2) identificar fraturas narrativas; 3) localizar silêncios e omissões; 4) rastrear metáforas que atravessam a narrativa. Esses movimentos não são rígidos, servem como orientação para que a sensibilidade clínica acompanhe a complexidade estética.
Uma leitura casuística, por mais abstrata que pareça, deve também considerar o contexto de produção do filme e as posições identitárias que ele mobiliza. Não se trata de reduzir sentido a biografias do realizador, mas de reconhecer que toda produção carrega marcas de época e de linguagem.
Exercícios de aproximação
Para quem se forma em psicanálise ou simplesmente deseja afinar a leitura, sugiro um exercício prático: assistir a um filme sem buscar enredo, apenas anotando quatro elementos que se repetem. Em seguida, refletir sobre que afetos cada elemento suscita. Esse procedimento transforma a experiência passiva em tarefa interpretativa, treinando a escuta para as sutilezas simbólicas das imagens.
Outra prática útil é a leitura em dupla: um leitor descreve sem interpretar, o outro interpreta sem descrever. O choque entre descrição e interpretação frequentemente revela zonas cegas e enriquece a análise.
O cinema como espaço de transferência
Existe uma passagem tênue entre a sala escura e a sala de análise: ambas instituiem um dispositivo de transferência. O espectador transfere afetos para personagens, para a câmera, para a música. Essa transferência é material para leitura psicanalítica porque revela padrões relacionais e expectativas reenactadas.
No trabalho clínico, observo como filmes podem funcionar como suporte para narrativas pessoais que ainda não encontram linguagem própria. Um paciente pode, por exemplo, definir-se por meio de uma personagem, manifestando desejos e resistências que emergem nas discussões sobre o filme. A análise desses movimentos oferece pistas importantes para o tratamento.
Limites da analogia clínica
Ressalto, contudo, que o paralelismo entre cinema e clínica não é total. O dispositivo fílmico é coletivo, instantâneo e circula em diferentes regimes de leitura. A transferência clínica, por seu turno, é singular e exige cuidado ético e metodológico. Reconhecer essa diferença é parte do trabalho: ela impede que a interpretação se transforme em celebração acrítica da obra ou em domesticação clínica do estético.
Implicações terapêuticas e formativas
O diálogo entre cinema e psicanálise tem potencial terapêutico e educativo. Em contextos de formação, filmografias comentadas ajudam a construir repertório interpretativo; na clínica, filmes podem ser usados como suporte para abordagens de psicoeducação e de elaboração simbólica.
Quando um filme é introduzido com sensibilidade, ele pode atuar como meio de simbolização suplementar: permitindo que experiências traumáticas encontrem equivalentes simbólicos menos ameaçadores. Essa mediação, porém, exige competência por parte do profissional para evitar prescrições moralizantes sobre quais obras são ‘adequadas’ para cada caso.
Na experiência de salas de formação que conduzi, a discussão coletiva sobre um filme frequentemente abre espaço para questões éticas ligadas à representação do sofrimento. Esses encontros mostram que a leitura crítica é inseparável de uma reflexão sobre efeitos e responsabilidades.
Para além da interpretação: transformação simbólica
Se a interpretação é a ponte, a transformação é o destino. Narrativas simbólicas bem trabalhadas no campo estético podem promover mudanças na forma como sujeitos narram sua própria vida. O que antes era um enredo fechado pode ganhar possibilidades de desdobramento; o que antes era um impasse pode encontrar figuração diferente.
Esse processo não é mágico. Requer tempo, repetição e uma ética da escuta que respeite os ritmos de cada sujeito. Entretanto, quando a experiência estética é mobilizada com responsabilidade, ela amplia o campo de sentido e oferece aos sujeitos condições de reescrever contornos dolorosos.
Leituras recomendadas e continuidade formativa
Para leitores interessados em aprofundar, convém estabelecer itinerários: combinar sessões de exibição com leituras teóricas clássicas e reflexões clínicas. A prática intercalada entre teoria e análise de cena gera uma aprendizagem durável, capaz de transformar repertório interpretativo em ferramenta clínica.
Quem deseja prosseguir pode buscar grupos de supervisionamento, seminários e arquivos fílmicos comentados. Na Psicanálise do site há materiais que dialogam com exercícios práticos; para resenhas de aproximação, consultar a resenha de filme e os ensaios sobre simbologia. Para informações institucionais e currículo, uma página de referência é sobre o autor.
Palavras finais: responsabilidade e curiosidade
A relação entre cinema e psicanálise exige duas virtudes complementares: responsabilidade e curiosidade. A primeira impõe limites éticos na leitura e na evocação do sofrimento; a segunda mantém vivo o desejo de seguir pistas que as imagens deixam. Ao conjugar essas virtudes, a leitura das narrativas simbólicas torna-se instrumento de conhecimento e cuidado.
Em encontros pedagógicos, Ulisses Jadanhi costuma lembrar que a prática analítica é uma arte de aproximação: aproximar sem aniquilar a singularidade, traduzir sem reduzir. Essa postura é válida quando se trabalha com cinema: ler filmes com rigor e humanidade é uma maneira de escutar o presente e abrir frentes para transformações possíveis.
Finalmente, vale reinvindicar que o platô da tela é também um lugar para exercício da escuta coletiva. Ao reunir olhares, o cinema permite que narrativas individuais se encontrem com narrativas sociais, e é nesse encontro que as imagens, as metáforas e os afetos se reconfiguram, oferecendo novas vias de sentido.
Que a experiência da próxima sessão seja menos acerca de responder perguntas prontas e mais sobre aprender a colocar novas perguntas — com paciência, crítica e compaixão.


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